Lendo “Joaquim Maria Machado de Assis” #1
A questão é que falar dos romances talvez exigisse uma certa dedicação e esforço que, no momento, não estou procurando. Além disso, li os contos de Machado de maneira espaçada e pouco sistemática. Foi então que tive a ideia de ler todos os contos e tecer algum comentário ou análise. Não seria uma crítica, até pela ausência de rigor que quero que essas postagens tenham. Eu colocaria isso como um "estudo". Assim, a intenção é ler todos os contos do autor e comentar sobre questões de estrutura narrativa, escrita e o que estiver dentro da minha competência.
Assim, Lendo Joaquim Maria Machado de Assis é minha carta de amor a esse autor que me fez apaixonar pela literatura. Pode parecer clichê, mas talvez isso seja parte da nossa identidade nacional. Você aprende a ler com Turma da Mônica, odeia Machado de Assis na escola, mas, se der uma chance em algum momento, vai se encantar com o que o autor escreveu. E aí, é um buraco de minhoca: você vai acabar assistindo a vídeos de professores como João Cezar de Castro Rocha comentando sobre a influência de Shakespeare na obra machadiana, ou consumindo qualquer conteúdo relacionado ao autor, até mesmo programas sobre direito e literatura.
Enfim, sem mais delongas, vamos aos contos...
Contos Fluminenses (1870)
Miss Dollar
Talvez o primeiro aspecto que chame a atenção ao entrar em contato com este conto seja o título: Miss Dollar. No momento em que Machado escreveu essa história, a moeda corrente no Brasil era o Réis. Logo, pensar em um título como esse nos instiga a procurar entender a história do dólar e o que ele representava naquela época.
O dólar já era moeda corrente nos EUA por volta de 1770, e seu nome deriva de thaler (em português, táler), abreviação de Joachimsthaler, uma moeda de prata cunhada pela primeira vez em 1518, com prata extraída das minas situadas em torno da cidade de Joachimsthal ("Vale de São Joaquim"), atual Jáchymov, na Boêmia (informação da Wikipédia, mas o foco do texto não é esse).
Então, a partir desse título — dólar como moeda internacional e o uso de "Miss", palavra de origem inglesa para tratamento de mulheres solteiras ou para concursos de beleza — já temos uma pista sobre a possível caracterização da personagem que dá nome ao conto. Porém, o que Machado faz ainda no início aponta para uma proposta bastante criativa:
“Era conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo sem saberquem era Miss Dollar. Mas por outro lado, sem a apresentação de MissDollar, seria o autor obrigado a longas digressões, que encheriam o papelsem adiantar a ação. Não há hesitação possível: vou apresentar-lhes Miss Dollar.”
É uma introdução no mínimo curiosa. O autor vai além, apresentando um aspecto metalinguístico ao comentar as conveniências da escrita do romance e conversando diretamente com o leitor. Curiosamente, na sua chamada "segunda fase", quando Machado “fica bom”, ele utiliza construções semelhantes, como em Memórias Póstumas de Brás Cubas, onde avisa que o romance não agradaria nem a gente "grave" nem a gente "frívola. Esse recurso, é muito semelhante com o que será apresentado em seguida:
“Se o leitor é rapaz e dado ao gênio melancólico...”
“Suponhamos que o leitor não é dado a estes devaneios e melancolias...”
“Já não será do mesmo sentir o leitor que tiver passado a segunda
mocidade e vir diante de si uma velhice sem recurso...”
Machado,
mais do que colocar o espelho para o leitor, o perscruta, investiga sua psique a
partir das possibilidades que ele pode dá sobre quem é “Miss Dolar”. É aquela
bravata atribuída a Freud, “quando Pedro fala de Paulo, sei mais de Pedro que
de Paulo”, atribuíndo assim, mais característica aos tipos possíveis de leitores
do que a personagem ainda misteriosa.
“A Miss Dollar do romance não é a menina romântica,
nem a mulher robusta, nem a velha literata, nem a brasileira rica. Falha
desta vez a proverbial perspicácia dos leitores; Miss Dollar é uma cadelinha galga.”
Acontece que a personagem que dá nome ao
conto é uma cadelinha, que -já adiantando o caminho que a história vai seguir até para poupar o tempo do benevolente leitor que se dispôs a ler esse estudo- é apenas um dispositivo narrativo, aos familiarizados seria algo como um “Macguffin”,
um objeto que serve meramente para fazer a história acontecer.
No caso
em questão, a cadelinha estava desaparecida e havia uma recompensa para quem a
encontrasse. Eis que logo se introduz outro personagem, Dr. Mendonça, que
coleciona cães, e novamente Machado sugere e joga para o leitor se comprometer
sobre o porquê dessa paixão ao colecionismo:
“Quais as razões que induziram o Dr. Mendonça a fazer coleção de cães, é
coisa que ninguém podia dizer; uns queriam que fosse simplesmente
paixão por esse símbolo da fidelidade ou do servilismo;”
“O leitor superficial conclui daqui que o nosso Mendonça era um homem
excêntrico; Não era. Mendonça era um homem como os outros; gostava de
cães como outros gostam de flores. Os cães eram as suas rosas e violetas;”
Bom,
seria impossível não perceber que o nosso personagem leva em seu nome a alcunha
de “Doutor”, e de fato se trata de um médico, que numa sequência mais
descritiva é dito que o descobriu um elixir para curar doenças, que
rendeu uma certa quantia em dinheiro e que possibilita atuar de maneira “amadora”.
Por essas descrições, percebe-se a que classe social pertence o personagem e o
cenário que a trama vai se desenrolar.
A situação que se coloca é que o médico vai devolver a cadelinha que havia
fugido, e seus donos moravam na rua de mata-cavalos (locus bastante presente na
obra de M.A), e no momento em questão vai conhecer a dona da mascote que é a
sobrinha da dona da casa. Uma bela mulher, com belos olhos verdes, ótima
compleição, e há uma atenção a esses detalhes:
“Miss dólar é da sobrinha - A boca era pequena, e tinha uma certa expressão
Imperiosa.
Mas a grande distinção daquele rosto, aquilo que mais prendia
os olhos,
eram os olhos; imaginem duas esmeraldas nadando em leite. – moça de 28 anos “
E ainda se destaca impressão de Mendonça:
“Mendonça nunca vira olhos verdes em toda a sua vida”
Margarida é o nome da personagem. Embora o nome em si não sugira grandes detalhes, a caracterização feita pelo autor já aponta o caminho que a trama vai seguir: “28 anos”, “mora com a tia”, “ olhos verdes” da qual Mendonça nunca
tinha visto e “viúva”. Ela não poderia ser uma solteirona nessa idade; alguma tragédia tem que ter atravessado a sua vida e lhe posto nessa situação, afinal é uma
história situada em uma camada social em que sofre dissabores, mas nunca comete
imoralidades.
Parece exagero apontar o caráter moral? Porém, o desfecho do casal se
dá na percepção de que o casamento de Margarida era infeliz, e que ela nunca
deu atenção a nenhum homem exceto o Dr.Mendonça, que a despeito de ser tardio,
ainda é seu príncipe encantando e o digno de seu amor. O conto se conclui da
seguinte forma:
“Os dois esposos são ainda noivos e prometem sê-lo até a morte. Andrade
meteu-se
na diplomacia e promete ser um dos luzeiros da nossa
representação internacional. Jorge continua a ser um bom pândego;
D. Antônia prepara-se para despedir-se do mundo.
Quanto a Miss
Dollar, causa indireta de todos estes acontecimentos, saindo
um dia à
rua foi pisada por um carro; faleceu pouco depois. Margarida não
pôde
reter algumas lágrimas pela nobre cadelinha; foi o corpo enterrado
na
chácara, à sombra de uma laranjeira; cobre a sepultura uma lápide com
esta
simples inscrição:
A Miss Dollar”
Optei por omitir outros personagens para focar nos pontos mencionados e por entender que, de certa forma, seria redundante explorar essas outras figuras. Alguns dos primeiros romances de Machado (como Ressurreição e A Mão e a Luva) possuem tramas semelhantes a este conto, e muitos de seus recursos de uso de referências e diálogo com o leitor já se fazem presentes aqui. Se já era possível antever o que viria? Talvez seja forçar a barra e efeito de um olhar anacrônico. Mas, sendo simplório e até banal, é um conto bem divertido de ler.
Comentários
Postar um comentário