Lendo Joaquim Maria Machado de Assis #3

 


Contos Fluminenses (1870) 

A mulher de Preto 



"Dom Casmurro" talvez seja o romance mais famoso de Machado de Assis. Logo, julgo interessante, ao visualizar a obra do autor, perceber como algumas ideias já haviam sido elaboradas de alguma forma, apresentando outra execução que nos permite entender como um mesmo conceito, temática ou trama pode ter diferentes abordagens.

No caso de A Mulher de Preto, alguns aspectos já citados nos contos anteriores retornam, como certo paternalismo, um jovem personagem em busca de sentido na vida, uma história situada entre as classes mais abastadas etc.

Mas, no conto em questão, há a revelação de um desenlace amoroso entre os personagens, causado pelo engano do marido em relação à esposa, baseado em ciúmes decorrentes de um mal-entendido — algo que talvez remeta ao romance mais famoso supracitado.

Aproveito o ensejo para comentar que considero uma tremenda bobagem reduzir a discussão sobre Dom Casmurro apenas à possível traição de Capitu. Esse tipo de conversa já se tornou um senso comum, servindo mais como retórica de namorados para flerte em mesa de bar do que como análise literária. A questão aqui não é procurar pistas perdidas quase 30 anos antes, mas sim pensar em como Machado elaborou a ideia de uma mulher acusada de traição.

Temos dois personagens no conto, Dr. Estêvão Soares e o deputado Meneses, que, só pelos títulos, já situam a camada social na qual a trama se desenrola. Eles se encontram no Teatro Lírico, que foi o berço da ópera no Brasil e ficava no Campo da Aclamação (posteriormente chamado de Campo de Santana e, atualmente, Praça da República), entre as ruas dos Ciganos (atual Rua da Constituição) e do Hospício (atual Rua Buenos Aires). 

Em seguida, Machado caracteriza Meneses como mais um de seus personagens: "misantropo, cético, não crê em nada, nem estima ninguém". Já Estêvão, segundo suas próprias palavras, estaria mais para Ulisses, ou seja, “astucioso, ardiloso e esperto”. Mas será que é isso mesmo? Não é o que o autor nos diz:

“Estêvão era o tipo do rapaz sério. Tinha talento, ambição e vontade de saber, três armas poderosas nas mãos de um homem que tenha consciência de si. Desde os dezesseis anos a sua vida foi um estudo constante, aturado e profundo. Destinado ao curso médico, Estêvão entrou na academia um pouco forçado, não queria desobedecer ao pai. A sua vocação era toda para as matemáticas. Que importa? disse ele ao saber da resolução paterna; estudarei a medicina e a matemática. Com efeito teve tempo para uma e outra coisa; teve tempo ainda para estudar a literatura, e as principais obras da antigüidade e contemporâneas eram-lhe tão familiares como os tratados de operações e de higiene.”


“Além disso, Estêvão tinha idéias singulares. Havia um padre, amigo dele, rapaz de trinta anos, da escola de Fénelon, que entrava com Telêmaco na ilha de Calipso. Ora, o padre dizia muitas vezes a Estêvão que só uma coisa lhe faltava para ser completo: era casar-se.”

Mais uma referência à figura de Ulisses, agora por meio de seu filho, Telêmaco, que também fica enfeitiçado na ilha de Calipso.

Meneses, que tem 47 anos, já se coloca na posição de conselheiro e admoesta o jovem misantropo a procurar uma mulher, pois a vida intelectual não basta para um homem. A figura do homem mais velho e conselheiro, que sempre dirá ao jovem niilista para arranjar uma mulher, pois só assim ele viverá plenamente as benesses da vida. Gasta-se, ainda, algum tempo na descrição física do personagem, como segue:

“A testa era alta, o queixo e as maçãs do rosto um pouco salientes. Adivinhava-se que devia ter sido formoso no tempo da primeira mocidade; e antevia-se já uma velhice imponente e augusta. Sorria de quando em quando; e o sorriso, embora aquele rosto não fosse de um ancião, produzia uma impressão singular; parecia um raio de lua no meio de uma velha ruína. É que o sorriso era amável, mas não era alegre.”

Apresentados os dois personagens, podemos seguir para a trama, que se desenrola novamente no Teatro Lírico. Lá, Estêvão se surpreende ao avistar justamente uma mulher de preto em um camarote de primeira ordem. Embora o amigo mais velho não a perceba, o médico troca olhares com ela, o que justifica seu encanto inicial.

Em seguida, ocorre o encontro, de maneira bastante conveniente — um aspecto que pode sugerir pouca inspiração. No entanto, Machado nos brinda com uma bela construção sobre o despertar dos sentimentos do jovem:

“Um dia Estêvão Soares foi convidado para um baile em casa de um velho amigo de seu pai. Mas ao entrar levava o coração livre; ao sair trouxe nele uma flecha, para falar a linguagem dos poetas da Arcádia; (...) não era ainda o amor, mas bem pode ser que viesse a sê-lo. Por enquanto era um sentimento de fascinação doce e branda; uma mulher que lá estava produzira nele a impressão que as fadas produziam nos príncipes errantes ou nas princesas perseguidas, segundo nos rezam os contos das velhas.”

Então, o jovem que antes era casado com os livros agora vivia o despertar de uma paixão. Essa é uma trama universal, ainda mais nos moldes em que se desenrola, pois a mulher por quem Estêvão se apaixona é descrita da seguinte forma:

“A mulher em questão não era uma virgem; era uma viúva de trinta e quatro anos, bela como o dia, graciosa e terna.”

Ela podia não ser uma virgem, mas, sem dúvida, nosso protagonista era — o que talvez aponte para a ideia de um retrato de jovem em formação, ainda pouco experiente nos assuntos da vida. Afinal, os livros não podem oferecer a verdadeira experiência do que é viver.

Talvez, se Estêvão tivesse maior consciência de sua posição, conseguisse prever o desenlace que o aguarda. Duas figuras experientes surgem em seu caminho, e ele, apesar de versado em medicina, ainda tem muito a aprender sobre os caminhos da vida. O texto segue descrevendo os efeitos da paixão sobre Estevão, que agora passava noites em claro pensando em sua musa — isso quando não sonhava com ela, mantendo seu pensamento fixo até mesmo quando inconsciente.

Então, como todo rapaz apaixonado na literatura, ele se vê dividido entre a dúvida e a certeza de seu romance: deve se entregar de fato? Deve ir visitar a mulher?

"Se eu não fosse àquele baile não conhecia esta mulher, não andava agora com estes cuidados, e tinha conjurado uma desgraça ou uma felicidade, porque ambas as coisas podem nascer deste encontro fortuito. Que será? Eis-me na dúvida de Hamleto. Devo ir à casa dela? A cortesia pede que vá. Devo ir; mas irei encouraçado contra tudo. É preciso romper com estas idéias, e continuar a vida tranqüila que tenho tido."


Mas as duvidas amorosas do inexperiente apaixonado, tentam ser dissuadidas pelo seu principal conselheiro e amigo, Meneses, porém em um tom que talvez fale mais de si do que sirva de admoestação ao amigo:

“Olhe, deixe a descrença para os que já sofreram as decepções; o senhor está moço, não conhece ainda nada desse sentimento. Na sua idade ninguém é cético... Demais, se a mulher é bonita, eu aposto que daqui a pouco há de dizer-me o contrário”

A todo momento, a história coloca em contraste a experiência e a inocência dos dois personagens. É nesse ponto que desponta a questão do paternalismo, tão presente nesses primeiros contos de Machado, e como o jovem, aplicado aos estudos, carece de experiência nos assuntos da vida.

Um traço característico da época é a escrita de cartas, elemento essencial na forma do romance desse período. Assim, o jovem se dedica a expressar seus sentimentos por meio de uma epístola — até ser interrompido por uma subtrama, no mínimo curiosa: a visita de um poeta:

“Estêvão releu a carta e quis ainda mandá-la; mas a interrupção do poeta fora proveitosa; relendo a carta, Estêvão achou-a fria e nula; a linguagem era ardente, mas não lhe correspondia ao fogo do coração.”

Surge então um momento de humor, construído a partir de um quid pro quo: o poeta acredita que o comportamento inquieto de Estêvão se deve à leitura de uma de suas obras, supondo que ele tenha ficado profundamente impactado. Na realidade, porém, o jovem apenas se encontra sob a tensão da carta que pretende escrever para a viúva.

Por fim, a verdadeira história da mulher é revelada sem muita cerimônia, que confia ao jovem apaixonado a tarefa de lhe ajudar a recompor o casamento. Trouxe aqui alguns trechos que podem remeter bastante à situação apresentada em Dom Casmurro:

“A viúva não era viúva; era mulher de Meneses; viera do Norte meses antes do marido, que só veio como deputado; Meneses, que a amava doidamente, e que era amado com igual delírio, acusava-a de infidelidade; uma carta e um retrato eram os indícios; ela negou, mas explicou-se mal; o marido separou-se e mandou-a para o Rio de Janeiro.”

“Todavia Madalena não era criminosa; o seu crime era uma aparência; estava condenada por fidelidade de honra. A carta e o retrato não lhe pertenciam; eram apenas um depósito imprudente e fatal. Madalena podia dizer tudo, mas era trair uma promessa; não quis; preferiu que a tempestade doméstica caísse unicamente sobre ela. Agora, porém, a necessidade do segredo expirara; Madalena recebeu do Norte uma carta em que a amiga, no leito da morte, pedia que inutilizasse a carta e o retrato, ou os restituísse ao homem que lhos dera. Essa carta era uma justificação.”

A história se conclui com Madalena reconhecendo o valor do jovem apaixonado, apesar de reatar seu casamento. O poeta, por sua vez, tem seu momento de sucesso, profetizando, a partir de seus encontros com Estêvão, o destino do rapaz, que acaba por seguir em sua solidão.

No fim, reforço que talvez o grande destaque deste conto seja justamente a presença de elementos que parecem ecoar em obras posteriores. Acredito que essas ideias são retomadas ao longo do corpus machadiano, seja no desenlace relacionado à fidelidade da figura feminina, no amigo inconveniente com aspirações pomposas ou até no próprio desfecho de Estêvão, que talvez ressoe em outros personagens do autor.


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